“O racismo opera de maneira transversal, influenciando práticas, decisões e padrões discriminatórios”, diz juiz federal Flames Ramatis

Um ano após a implementação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, editado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder Judiciário se depara com o desafio de repensar sua atuação institucional a partir de um novo olhar: aquele que vê, identifica e enfrenta o racismo estrutural que atravessa o sistema de justiça. 

Nessa esteira, várias iniciativas estão sendo tomadas para sensibilizar os tribunais sobre a urgência do tema. Em novembro, por exemplo, o CNJ lançou, de forma inédita em todo o país, o 1º Mutirão de Julgamento e Impulsionamento de Processos com Ênfase na Temática Racial. O objetivo é priorizar o processamento de feitos com temática racial ou de comunidades quilombolas, assegurando movimentação processual concreta ou julgamento concluído em, ao menos, 20% das ações selecionadas para cada corte participante - como é o caso do TRF2. 

Para debater essas questões e articulá-las com o mês da Consciência Negra, entrevistamos o juiz federal e integrante do Comitê de Equidade Racial e de Gênero da SJRJ, dr. Flames Ramatis Cesário. O magistrado falou sobre o impacto do Protocolo no cotidiano da Justiça, sua relação com a democracia e o papel estratégico da magistratura na mudança de paradigmas. Ele também apontou caminhos para que tribunais e agentes públicos adotem uma postura mais crítica e comprometida com a equidade racial.

O Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial, editado pelo CNJ, está completando um ano agora em novembro. Esse instrumento propõe um novo olhar, mais crítico, sobre uma suposta neutralidade, ou universalidade, do Direito e, por consequência, de sua aplicação. Para o senhor, o quanto esse deslocamento de perspectiva pode ajudar a tornar mais evidente as desigualdades e violências frutos do racismo estrutural e que estão o tempo todo atravessando o sistema de justiça?

Dr. Flames Ramatis Cesario: O Protocolo foi editado como fruto de um processo histórico político-constitucional que possui como principais marcos a Constituição de 1988 e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, internalizada em janeiro de 2022. Constitui medida estratégica que contribui para a realização do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável nº 16 da Agenda 2030 da ONU. E esse novo marco redefine a interpretação de todo o nosso ordenamento a partir da perspectiva racial, tendo como pressuposto a concepção estrutural do racismo.

No censo IBGE de 2022, a maior parte da população brasileira se declarou parda ou preta (55,5%, equivalente a 112,7 milhões de pessoas), ao passo que, segundo o Diagnóstico Ético-Racial no Poder Judiciário, realizado pelo CNJ em 2023, o percentual de magistrados pretos ou pardos é de apenas 14,5% (1930 do total de 14.582 de magistrados com informação a respeito de raça/cor), refletindo, no Judiciário, a mínima participação da população negra em espaços de poder.

Nesse contexto, o Protocolo estipula como principais objetivos fomentar o acesso à justiça, aprimorando o tratamento conferido àqueles jurisdicionados cuja realidade difere da realidade vivida por quem julga os processos; estimular na magistratura a reflexão sobre suas preconcepções e vieses e ampliar a compreensão das condições materiais e simbólicas que incidem sobre fatos e conflitos.

O olhar crítico a partir dessa nova perspectiva auxilia a identificar as situações assimétricas que se reproduzem de forma naturalizada nas relações sociais e nos diversos ramos do direito, fruto do racismo estrutural, seja com a falácia da meritocracia a perpetuar as disparidades raciais no mercado de trabalho, seja com a disseminação de estereótipos raciais negativos que alimentam a seletividade penal.

Após um ano de implementação do Protocolo no país, que avaliação o senhor faz da recepção e aplicação desse instrumento nos tribunais brasileiros? Que medidas ainda precisam ser tomadas para que esse documento seja percebido - e adotado - enquanto uma ferramenta para aprimoramento da própria democracia? 

Dr. Flames Ramatis Cesario: A implementação é recente e o Protocolo ainda precisa ser difundido e conhecido pelos agentes do sistema de justiça. Tão importante quanto a publicação é a manutenção de um esforço contínuo de conscientização e adaptação das práticas judiciais. O próprio documento estabelece como estratégia central a realização de treinamentos obrigatórios para todo o corpo funcional do Poder Judiciário, a realização de estudos e pesquisas aplicadas e a supervisão e avaliação das práticas judiciais pelos órgãos correcionais, dentre outras medidas. É essencial que o Protocolo seja reconhecido como instrumento normativo e operacional para orientar e uniformizar as práticas judiciais, administrativas e processuais.

A boa notícia é que, nos últimos anos, as instituições têm buscado expandir os debates sobre raça e gênero, diversidade e integração. Exemplo disso é a criação do próprio Comitê de Equidade da SJRJ, que auxilia na difusão das iniciativas adotadas pelo Poder Judiciário e promove ações visando à igualdade de oportunidades de participação de mulheres e negros. Para o próximo ano há a intenção de desenvolvimento de uma ação de capacitação para servidores sobre o Protocolo, buscando assegurar sua implementação efetiva nas rotinas processuais da nossa Seção Judiciária.

De todo o modo, a promoção da equidade racial no Poder Judiciário demanda um diálogo interinstitucional permanente, já que o racismo opera de maneira transversal, influenciando práticas, decisões e padrões discriminatórios nas esferas pública e privada.

Recentemente foi realizado, com sucesso, o 1º Congresso Interinstitucional de Combate à Discriminação e Promoção da Equidade no RJ, iniciativa conjunta do Comitê de Equidade da SJRJ, da Procuradoria do INPI e do Programa de Combate ao Assédio da PGF/AGU, que contou com a participação de comitês do TJ/RJ, TRT 1ª Região, MPF, MPE, DPU, DPE, entre outros. Espera-se uma nova edição do Congresso para o ano vindouro.

É por meio de esforços coordenados e contínuos que o Protocolo contribuirá para um sistema de justiça mais humano, plural e legítimo, pressuposto para a verdadeira democracia.

Em novembro, os olhares também se voltam para o Dia da Consciência Negra (20/11). Levando essa data em conta, e considerando o passado escravocrata do Brasil, cujos efeitos ainda permanecem vivos em nossas relações sociais, econômicas e jurídicas, é possível estabelecer uma relação entre o Protocolo e uma nova perspectiva ética sobre a Justiça? Por quê?

Dr. Flames Ramatis Cesario: O pilar da conscientização sobre a importância e a necessidade do Protocolo reside na compreensão de que o racismo estrutural tem suas raízes históricas no sistema escravocrata baseado na cor da pele que permeou a economia e a sociedade brasileiras por mais de três séculos da nossa história. Como aduz o historiador Laurentino Gomes no primeiro volume da trilogia “Escravidão”, não há outro assunto tão definidor da nossa identidade nacional: o estudo sobre a escravidão nos ajuda a entender o passado, o que somos hoje e o que almejamos ser no futuro.

Aliás, além da aludida série sobre a história da escravidão no Brasil, outra grande obra sobre o tema e que merece ser indicada por ocasião do Dia da Consciência Negra é o clássico “Um Defeito de Cor”, obra da primeira mulher negra a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, Ana Maria Gonçalves. O romance histórico retrata com primor a condição do negro no Brasil do século XIX através de sua personagem principal, a africana escravizada Kehinde.

A abolição formal da escravidão não foi suficiente para desconstituir as hierarquias raciais até então estabelecidas e que até hoje influenciam as relações sociais e o funcionamento das instituições. Perpetua-se um padrão histórico de vulnerabilidade socioeconômica sobre a população negra, herança da omissão do Estado em estabelecer medidas reparatórias após o maio de 1888.

É dentro desse contexto que o Protocolo traduz uma revisão crítica das práticas judiciais que reproduzem a desigualdade estrutural, com a incorporação de uma leitura histórica e social dos conflitos, propondo uma interpretação do direito atenta às realidades concretas vivenciadas pela população afrodescendente. O guia para magistrados e magistradas contido na terceira parte do documento fornece as ferramentas para um processo decisório mais consciente e responsável acerca das particularidades que podem afetar pessoas negras, visibilizando vulnerabilidades raciais e buscando a promoção da equidade racial.

Um dos debates suscitados dentro da pauta racial é em relação ao quanto o Judiciário pode ser um agente de perpetuação do racismo na sociedade. Em que medida a Justiça também pode atuar como um agente transformador da realidade? Sendo juiz, especificamente, como o senhor avalia o papel da magistratura dentro dessa gangorra entre tradição e mudança?

Dr. Flames Ramatis Cesario: Como mencionado em resposta anterior, ainda é pequeno o percentual de pessoas negras na magistratura, tal como ocorre em outras esferas de poder. A ausência de diversidade impacta na forma de pensar e aplicar o Direito, restringindo a pluralidade de vivências, referências e experiências que poderiam potencializar a interpretação das normas e a compreensão dos conflitos sociais. 

A publicação dos Protocolos com perspectiva de gênero e racial constituem um verdadeiro chamado à superação de práticas e valores que historicamente sustentaram desigualdades estruturais no campo jurídico. Os novos ventos exigem que a magistratura assuma papel ativo na construção de um sistema de justiça que se comprometa a superar o mito da neutralidade formal, reconhecendo que gênero e raça são elementos estruturantes a serem considerados na prestação jurisdicional. Isso implica na adoção de uma postura crítica e consciente sobre os vieses que historicamente orientaram o Direito, transformando-o em instrumento efetivo de inclusão, reparação e justiça social.